FAP, CAPÍTULO 2 : Cepticismo – O maravilhoso mundo do pensamento crítico

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Espírito Crítico

Podemos confiar no que uma pessoa diz que viu ou sentiu para formarmos opiniões com implicações importantes na nossa vida? Não tenho dúvidas que a resposta é não. Não devemos aceitar como prova da existência de explicações fora das leis naturais (sobrenaturais) a palavra de uma pessoa por mais confiança que tenhamos nela. Aliás, até vou mais longe, não devemos confiar em nós mesmos quando confrontados com coisas que desafiam as leis da natureza. Já vimos que é muito fácil o nosso cérebro enganar-se.

E pode a crença em explicações sobrenaturais para pequenos acontecimentos ou truques de magia afectar a nossa vida? Eu sou da opinião que sim. Ao aceitarmos que determinado acontecimento não tem explicação natural/científica e que a sua explicação está em espíritos/energias/magia estamos a colocar-nos em posição de aceitar a mesma explicação para assuntos de importância na nossa vida: se é possível àquele mágico conseguir levitar1 só com a força da mente porque não há-de ser possível curar um cancro só com a força da mente (e a ajuda paga de um “especialista”)?

Ao aceitarmos que é possível colocar espíritos a falar connosco através de copos em cima de uma mesa, estamos a aceitar que existem espíritos e estamos a abrir a hipótese de sermos enganados.

Não devemos nunca contentarmo-nos com uma explicação fácil na falta de uma explicação boa. Não é por nós não conhecermos a explicação de algo que essa explicação não existe. Na falta de uma boa explicação a resposta não é: “é a energia cósmica” ou “são os espíritos”. Nessa situação a única resposta aceitável é : “não sei”.

A leitura a frio

Um bom exemplo de como a falta de espírito crítico tem ao longo dos tempo levado pessoas a serem enganadas e roubadas é o trabalho realizado por espíritas, astrólogos e afins.
Estes artistas limitam-se a dizer frases genéricas que se aplicam a qualquer pessoa, especialmente porque as frases têm quase sempre duplo sentido “vejo que é uma pessoa forte mas que por vezes tem momentos de fraqueza” ou que vão atirando o barro à parede com frases do género “vejo que perdeu uma pessoa importante na sua vida” e lêem a reacção da pessoa e se for positiva continuam a história e se a pessoa discordar mudam de assunto ou passam o acontecimento para o futuro “pode ainda não ter acontecido…”.

Alguns artistas são um bocado mais sofisticados e adequam o discurso ao cliente. Se for um homem de meia idade podem dizer “vejo que as suas responsabilidades adiam os seus sonhos” ou se for uma mulher “vejo que cuidar da sua família obrigou-a a abrandar ou até a desistir de uma carreira”. Este processo a que é dado o nome de leitura a frio é largamente ajudado pelo cliente crente2. Como acha que a pessoa que está à sua frente tem poderes, está aberto a acreditar nisso e quando ela falha alguma previsão, esquece-a. Chama-se tendência de confirmação e é um truque giro do nosso cérebro; esquecermos o que não nos interessa.

Temos a mania que sentimos quando alguém nos telefona? Simples, lembramos a única vez em isso aconteceu e esquecemos as dezenas de vezes em que alguém nos telefonou e não estávamos a pensar nessa pessoa ou das dezenas de vezes em que pensamos nela e ela não telefonou. Bem, para sermos justos não é que nos tenhamos esquecido, simplesmente não nos lembramos. Porque raio nos havíamos de lembrar de todos esses acontecimentos que estão sempre a acontecer? Agora uma pessoa telefonar quando estamos a pensar nela, isso sim! Aí está algo fora do comum que vale a pena manter na memória.

Já agora, os signos, os astros, as linhas da palma da mão não servem para nada, fazem simplesmente parte do espectáculo, apesar de também poderem ajudar o artista. Por exemplo a leitura da palma da mão em que o artista agarra a mão do cliente, permite manter algum controlo físico sobre ele dificultando a sua fuga e permite “ler” as reacções do cliente: se disse alguma coisa acertada é provável que haja da parte dele alguma reacção física, um estremecer que permite ao artista perceber que está no “bom” caminho, e claro, a avaliação do estados das mãos e das unhas pode dar boas pistas sobre a pessoa. Se costuma ver o mentalista3 na televisão é provável que já tenha visto estes ou outros truques parecidos.

A leitura a quente

Mas os verdadeiros mestres da aldrabice são os artistas que fazem leitura a quente. Os que conhecem previamente as pessoas que vão “ler”.
É comum em sessões de grupo, como as que passam na televisão ou em espectáculos religiosos onde são efectuadas curas, os espectadores/clientes preencherem um cartão com os seus dados para uso futuro ou então simplesmente terem de esperar numa sala onde vão conversando e onde vão circulando membros da quadrilha que vão registando mentalmente o que ouvem para uso posterior. Durante a sessão essa informação que foi recolhida é passada para o artista, por via rádio por exemplo, que vai repetindo o que lhe transmitem como se estivesse a receber essa informação do além.

Mente aberta

E o que torna as energias cósmicas ou os espíritos más explicações? Porque não as devemos considerar como respostas possíveis?
Devemos estar abertos a novas possibilidades, sim. Não temos explicações para tudo o que existe, e se queremos continuar a aprender como espécie, temos de ter a mente aberta a novas explicações. Mas isso não quer dizer que devemos aceitar como verdadeiras, explicações sem provas dadas ou comprovadamente falsas.
A esmagadora maioria dos eventos/factos atribuídos a forças sobrenaturais estão hoje em dia explicados mas infelizmente essas explicações são poucos conhecidas ou desprezadas. Isso acontece em parte porque durante gerações e gerações as explicações sobrenaturais foram de tal maneira difundidas que se torna praticamente impossível erradicá-las. Mas também não podemos ignorar o facto de a realidade ser complexa e as explicações serem obviamente complexas, o que dificulta a sua compreensão e consequentemente a sua transmissão.

Navalha de Occam

Occam foi um padre franciscano que nasceu na Inglaterra em 1285 e morreu na Alemanha em 1347. Escreveu várias obras sobre política, filosofia e teologia e ficou na história graças à frase “pluritas non est ponenda sine neccesitate”/”pluridades não devem ser postas sem necessidade” e que é normalmente convertida em “a explicação mais simples é provavelmente a certa”.
Este príncipio já defendido por Aristóteles (Séc. IV AEC) e conhecido pelo nome “navalha de Occam” deve estar sempre presente ao analisarmos um relato de um acontecimento/noticia/evento. Se alguém lhe disser que leu num jornal que a mulher mais idosa do mundo tem 150 anos, várias hipóteses são possíveis:

  • A mulher tem mesmo 150 anos
  • A mulher (ou quem falou por ela) mentiu
  • A mulher (ou quem falou por ela) está enganado/a
  • O repórter mentiu
  • O jornal enganou-se
  • A pessoa leu mal a noticia
  • A pessoa já não se lembra bem da idade que leu no jornal

Destas hipóteses há uma que salta à vista. Uma delas obriga a repensar o que conhecemos do ser humano. As pessoas mais idosas documentadas até ao momento encontram-se sempre da casa dos 110 anos (122 é o recorde conhecido), para chegar a 150 essa pessoa teria de ter uma constituição muito especial, teria de viver em condições especiais, enfim teríamos de pensar numa explicação pouco simples para explicar este facto. Qualquer umas das outras respostas é mais simples, mais comum e muito mais provável.

No mundo das fraudes e aldrabices a escolha é normalmente entre uma resposta que requer forças/energias não explicáveis e uma resposta simples, e extremamente comum: aldrabice. Qual acham que é mais simples, qual acham que é mais provável?

Não é aldrabice? Existem mesmo forças desconhecidas em acção? Muito bem, então como Carl Sagan colocou de maneira brilhante “afirmações extraordinárias exigem provas extraordinárias”!
Não nos vamos contentar com as palavras das pessoas envolvidas. Queremos provas, provas em ambientes controlados onde a probabilidade de conseguir aldrabar seja o mais reduzido possível.

James Randi

Há dois tipos de mágicos, os que explicam que tudo não passa de truques/ilusionismos e os que se apresentam como verdadeiros mágicos. James Randi pertence ao primeiro grupo. Começou a sua carreira em 1946 e realizou várias proezas entre elas bater o recorde que pertencia a Harry Houdini4 de permanência dentro de um cofre no fundo de uma piscina .

Mas não é como mágico que ele é mais conhecido, é como céptico. Como mágico e conhecedor da arte de iludir, desmascarou inúmeros mágicos que diziam ter verdadeiros poderes psíquicos entre eles Uri Geller, o Israelita que na década de 70 ficou famoso por dobrar colheres com o poder da mente (segundo ele, claro) e James Hydrick um Norte-Americano “mestre” de Artes Marciais que afirmava ter poderes telecinéticos5.

Em 1964, durante um programa de rádio um ouvinte desafiou-o a “colocar o dinheiro onde tinha a boca” ao que ele respondeu que daria mil dólares a quem conseguisse provar ter poderes paranormais.
Provar que se tem poderes é algo relativamente simples, coloca-se a pessoa num ambiente controlado, onde não pode fazer truques, e mede-se os resultados. O prémio tem vindo a crescer ao longo dos anos, e está agora em um milhão de dólares e sob a alçada da James Randi Educational Foundation. Centenas de pessoas aceitaram ser submetidas aos testes e todas falharam estando até ao momento por provar que existam pessoas com poderes paranormais.

Assim o meu conselho a quem ler este texto e achar que tem poderes e que eu sou um descrente e que não sei do que falo, e que tenho a mania que sou esperto e que não acreditam em bruxas mas que as há, há e todo esse género de auto-ilusões não percam tempo a dizer-me isso, concorram ao prémio, desmintam-me e fiquem ricos ao mesmo tempo.

Os aldrabões e as energias negativas

Os aldrabões são muito bons a enganar crentes mas quando estão na presença de cépticos que estão atentos a todos os seus movimentos ou em situações controladas onde não podem fazer os seus truques falham de modo escandaloso. Mas não é isso que os pára porque, segundo eles, a energia negativa dos cépticos faz os seus poderes falhar. E com esta resposta absolutamente ridícula conseguem continuar a enganar os crentes que acham que essa reposta faz sentido.

A triste realidade

Mas a triste realidade é que estou a gastar o meu latim. As pessoas querem acreditar, querem que existam soluções fáceis, querem acreditar que o futuro lhes é favorável, querem acreditar que serão curadas sem operações, sem médicos. E estão dispostas a pagar para ter isso. E não há nada que possamos fazer para as convencer do contrário. A crença é algo que está de tal maneira enraizada no cérebro que é praticamente impossível removê-la.

Quando uma pessoa é confrontada com informação nova que contraria a sua crença, existe um conflito no cérebro e este fica dividido criando uma dissonância cognitiva.
Este fenómeno foi estudado pela primeira vez por Leon Festinger (Nova York, 8 de Maio de 1919 – Nova York, 11 de Fevereiro de 1989) que juntamente com dois colegas se infiltrou num culto que previa o fim do mundo e a salvação dos membros do grupo por uma nave extra-terrestre6. Quando nada disso aconteceu, o grupo ao invés de deixar de acreditar passaram a acreditar ainda mais convictamente. Tinham feito um sacrifício pessoal tão grande que simplesmente não eram capazes de aceitar que afinal estavam errados7.

O que a teoria da dissonância cognitiva nos diz é muito interessante: alteramos a nossa percepção/entendimento/avaliação dos factos que vão contra as nossas crenças/hábitos/decisões anteriores. E quanto maiores forem os sacrifícios pessoais que foram feitos por essa crença, mais dificilmente aceitamos a verdade:

  • Desvalorizamos as críticas ao carro que comprámos com as poupanças de vários anos
  • Nunca vemos ou desvalorizamos os penaltis contra o nosso clube;
  • Fumar faz mal, mas alivia o stress que é pior que fumar, por isso não há problema se eu fumar;
  • eu sou bem comportado e o professor castigou-me. O professor não gosta de mim.

Desvalorizamos os factos que contrariam e valorizamos os que apoiam a opinião que temos sobre um assunto.

Por mais errado que seja este tipo de raciocínio não deixa de ter a sua utilidade. Permite diminuir na nossa mente, a importância dos nossos erros evitando assim que nos torturemos por eles o que em situações limite poderia levar ao suicídio.
É um mecanismo de sobrevivência útil, mas que convém conhecer e controlar se queremos fazer um juízo certo das situações que nos são apresentadas.

O que esta teoria nos diz é de uma importância extrema na nossa capacidade de decidir e que nunca é demais repetir: Depois de o cérebro ter tomado uma decisão sobre um assunto, vai valorizar as informações que apoiem essa opinião e ignorar as que a contrariem.

Fim de viagem

Esta foi uma muito curta viagem para o introduzir ao cérebro e ao pensamento crítico, espero que tenha gostado.
Vamos passar agora a explorar algumas das fraudes, aldrabices e parvoíces mais conhecidas.

 

Notas de Rodapé

 

1. Procure na Internet por “levitação Balducci” e aprenda um truque simples que, nas condições certas (ângulo, luz, roupa), dá a ilusão de uma auto-levitação de 10/20 centímetros.
2. Full Facts Book of Cold Reading escrito por Ian Rowland é considerado o melhor livro sobre leitura a frio e pode ser comprado no seu site em http://www.thecoldreadingbook.com/
3. O Mentalista é uma série televisiva em que o consultor Patrick Jane (Simon Baker) trabalha com um departamento policial e usa os conhecimentos adquiridos quando trabalhava como vidente para resolver casos. Apesar de a série ser de uma maneira geral igual a qualquer outra das muitas que existem, em alguns episódios Patrick usa, e explica, truques que são usados por muitos artistas na vida real.
4. Houdini também assumia que tudo era feito com truques e como céptico também desmascarava vigarices.
5. Vale a pena ver o programa televisivo onde James Randi desmascarou James Hydrick em http://www.youtube.com/watch?v=QlfMsZwr8rc e este pequeno vídeo onde se vêm algumas das suas “habilidades” e a sua confissão http://www.youtube.com/watch?v=u7yDLRib5CQ
6. Infelizmente este tipo de parvoíce ainda é muito comum. Harold Camping após “analisar” a bíblia “concluiu” que o fim do mundo seria em 2011 (depois de ter previsto e falhado que seria em 1994). Os seus seguidores gastaram fortunas a promover o acontecimento e muitos desfizeram-se de tudo o que tinham, e traduções. Podem saber mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Profecia_do_fim_do_mundo_em_2011
7. O trabalho desenvolvido sobre este assunto foi publicado no livro “When Profecy Fails”, HarperTorchbooks, 1964.

 

 

v1.0.20121027.1630 : Primeira publicação

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